Os FARSA são uma banda de Post-Hardcore da Margem Sul / Lisboa. "Tempo Morto", de 2018, é até ver o único trabalho editado pelo quinteto. Cantado na língua de Pessoa, ao longo destes 6 temas somos arrastados para momentos escuros e pesados, tristes e desoladores. De certa forma acaba por ser um pouco o reflexo de toda a criação artística do grupo. 6 temas com uma dinâmica muito escura, mas plena em energia, ainda assim. Estranho, não?
Senhoras e senhores, os FARSA…
Boas. Obrigado pela vossa disponibilidade, antes de mais. Comecemos por algo deveras actual: como é viver uma pandemia? Como músico, como humano, como trabalhador, como… esta situação veio mudar algo em vós? Fez-vos começar a ver as coisas de outra forma? Como banda, qual foi o impacto da pandemia?
Suponho que a nossa experiência não tenha nada de muito diferente da de quem nos rodeia. Como banda acabaram-se os concertos, os ensaios e os planos que tínhamos para gravar foram adiados. Como trabalhadores todos temos vivências diferentes: uns já trabalhavam em casa, outros tiveram que se adaptar, por isso, também aí, foi mais fácil para uns do que para outros. Mas, no geral, continuamos sujeitos ao mesmo regime de exploração, o que é dizer: nenhum de nós perdeu o emprego por causa da pandemia. O que não é de somenos. Vivemos agora com uma medida de tempo nova, o que obrigou a redefinir o “tempo morto” que tanto valorizávamos; diluiu-se a fronteira entre esse tempo e o “tempo (in)útil” de trabalho e entre o espaço doméstico e o espaço laboral. Temos a sensação que só saberemos realmente o impacto quanto tudo retomar alguma normalidade. Até lá, parece-nos que tudo o que tem acontecido só tem reforçado a forma como já víamos as coisas.
Qual a ideia / conceito por trás do nome FARSA?
A ideia de FARSA condensa muita coisa, mas, antes de mais, foi uma forma de mantermos presente o que nos levou a criar a banda. Nomeadamente a necessidade de romper com as performances que dominam o nosso dia-a-dia, assentes em múltiplas FARSAs (as que desempenhamos no trabalho, entre a família, enfim, em diversos contextos), e a de romper com a inevitabilidade de termos que deixar os momentos em que nos sentimos vivos para esses “tempos mortos”, i.e. para os tempos livres do trabalho e de outras obrigações. Esta banda serve principalmente para isso: serve para criar, em vez de produzir, como acontece quando um grupo de amigos se junta livremente, sem obrigações e sem lidar com expectativas. Quando estamos juntos não temos que mascarar o que sentimos com um sorriso falso, nem temos que viver com o “síndrome do impostor” que nos permite simular que tudo está bem, que tudo vai ficar ainda melhor e que somos muito seguros, confiantes e bem-sucedidos. FARSA, em suma, remete para as relações de poder em que vivemos enredados e para as mentiras que alimentamos na maior parte do nosso tempo para “pagar as contas” e para fazermos crer que somos agradecidos pela vida de merda que nos dão.
Mais do que nome, que está por trás de FARSA, a banda? Qual o conceito por trás da banda em si? Vejo que sois bastante interventivos, participativos, que dais a voz por causas… são os FARSA, para lá de uma banda, um veículo de mensagens conscientes?
Em parte já ficou respondido. Mas se tivermos que escolher um conceito será o de amizade. A nossa vontade de intervenção começa neste pequeno reduto relacional que escolhemos. É uma forma de nos recusarmos a deixar de ter alguma coisa a dizer sobre a forma como o nosso tempo é ocupado e como usamos as nossas próprias vidas. A amizade é profundamente política, nem que seja por nos lembrar onde é que estão os nossos inimigos. A mensagem que veiculamos mais conscientemente será por isso essa: a de distinguir o amigo do inimigo. É uma mensagem que se dirige em primeiro lugar a nós próprios e que se chegar a mais alguém não é por nenhuma necessidade de evangelizar ou pregar qualquer verdade: quem se encontrar naquilo que dizemos será por perceber essa demarcação entre a amizade e a inimizade e será, provavelmente, por já ter alguma ideia do lado em que quer estar.
É assim que existis na Música? Como uma "arma" que deve ser usada em prol das causas que tomamos como boas e positivas? Ainda é, o Punk Hardcore, uma "arma"?
O Punk-hardcore é uma arma. Mas só nos interessa enquanto arma quando está nas nossas mãos e não quando nos está apontada à cabeça, como acontece com a maioria das outras armas com que lidamos. Enquanto for um espaço de liberdade e autonomia, em que prevalece a ética “do it yourself” e em que predominam formas de relacionamento antagónicas ao cinismo e utilitarismo quotidianos, o Punk-hardcore será sempre uma arma nas mãos de quem a quiser usar. Não impomos limites às causas que a música pode abraçar e, nesse sentido, não somos portadores de nenhuma mensagem especial. No Punk-hardcore cabe tudo aquilo que sirva para nos libertarmos e que nos lembre que somos iguais. Não cabe aquilo que exclui e que constrange. A termos alguma causa será a de contribuir para manter e expandir espaços como estes. De resto, queremos estabelecer um diálogo com quem nos vê e com quem nos ouve, reconhecendo o privilégio que é ter um microfone para estabelecer essa conversação. Isso só se faz se falarmos do que é comum e não dos nossos egos ou manias pessoais.
Quem eram os FARSA antes de serem FARSA? O vosso trajecto, as vossas aventuras no mundo da música, as vossas demandas político-sociais, inclusive.
Os FARSA antes de serem os FARSA eram FARSAs mais isoladas. Foi no Punk-hardcore que nos conhecemos e em que em boa medida nos fizemos aquilo que somos hoje. Tivemos outras bandas tão obscuras quanto os FARSA, nuns casos bandas que partilhamos, noutros bandas com outras pessoas. Foi pelo Punk-hardcore que começamos a perceber que tudo é político – das relações mais pessoais e íntimas até às causas mais abrangentes – e foi a partir dele que nos lançamos ao mundo, não para nos rendermos, como tudo nos impelia a fazer, mas para interferir com uma ordem para que nos amestravam e que nos dizem ser imutável.
Foi com prazer que, quando me deparei convosco, constatei que cantais em português. Não que seja um purista da língua, na música, mas a melancolia que transmitis, no meio do rebuliço, adequa-se na perfeição à nossa língua. Foi, desde o dia 1, uma certeza que faríeis uso da língua portuguesa, ou surgiu durante o processo de ensaios, jams, etc?
Foi uma decisão que surgiu desde o primeiro dia. Não, certamente, por qualquer “purismo” ou sentimento patriótico, mas, simplesmente, por que é em português que falamos e que nos é mais fácil comunicar. Por darmos importância ao que dizemos e à forma como dizemos, o português pareceu sempre a saída mais óbvia. A visceralidade e a força dessa melancolia sente-se mais em português porque é em português que sofremos o seu impacto, que o pensamos e que o partilhamos uns com os outros, o que acontece apenas por ter calhado termos nascido e crescido por estas paragens.
"A política / E a cidade / A economia / E o trabalho / A cultura / E o lazer / Negamos tudo / Negamos tudo". De que forma vos identificais com esta citação? Em que esfera de influências vive esse lado da vossa obra: a mensagem escrita?
Identificamos-nos totalmente. As letras resultam de conversas que temos desde há muito e, quando escritas, suscitam sempre conversa e discussões entre todos, até expressarem, de alguma maneira, aquilo que pensamos. Mas talvez nessa enunciação, que parece uma lista de compras, talvez seja útil dizer algo mais, porque há algumas referências (como a cultura e o lazer) que suscitam sempre alguma perplexidade. O gesto de negar é algo que decorre daquilo que nos atrai e sempre atraiu no Punk. O Punk é negação. Nega-se, inclusivamente, a ele próprio. É a condição para se reinventar, para não ser tornar uma fórmula preconcebida ou para não se resumir a um ritual mais ou menos onanista. Nega no sentido de sujeitar tudo à crítica, inclusivamente aquilo que nos é eventualmente mais simpático. Nega não por qualquer deleite niilista, mas por ver na volúpia da destruição uma volúpia criadora. A negação (e o Punk) não recicla, nem reforma; a negação destrói para construir sobre as ruínas daquilo a que se opõe. Quando dizemos que negamos todas essas coisas, negamo-las quer nesse sentido crítico, quer, de facto, nesse sentido destruidor. Se negamos a cultura é porque tudo aquilo que encaixa nessa designação existe integrado num conjunto de relações de poder (político e económico) e por se ter tornado praticamente impossível pensá-la sem ser nesse contexto. Por outras palavras, a cultura existe numa relação de interdependência com todas essas outras coisas que enunciamos. “Cultura” serve para distinguir um conjunto de actividades de outras tantas e situá-las numa ordem de valor diferente, como se umas actividades fossem mais importantes ou mais úteis do que outras ou como se tudo o que fazemos não fosse cultura. Cultura, enfim, para além de ser um produto, como tantos outros, que o mercado nos disponibiliza, serve, em suma, para manter um certo status quo. Dizemos negar o lazer pela mesma razão. Chamamos lazer, geralmente, àquilo com que ocupamos o tempo livre. Mas resta saber de que é livre esse tempo. Não é, certamente, livre porque nós sejamos livres; é um tempo livre porque o tempo vive amarrado ao trabalho; chamamos livre ao tempo que sobra do trabalho. Cultura e lazer, neste cenário, existem, acima de tudo, como meios para recuperar o espírito para o trabalho (para sermos “úteis”): não servem para abrir ou pensar novas possibilidades de vida, mas somente para aguentarmos aquilo que se supõe ser realmente importante, o trabalho produtivo, aquele que produz riqueza. Servem, em última instância, para que tudo permaneça igual.
O outro lado da obra: o lado musical / instrumental; onde ides beber para compor? Li, algures, que dais Refused (?) como uma das influências, mas e para lá destes?
Todos ouvimos coisas muito diferentes e isso reflecte-se, provavelmente, no ambiente musical e lírico da banda: da raiva mais imediata do Punk-hardcore, a esse fundo melancólico que referias e, por vezes, a um ambiente mais negro, devedor de outras influências sonoras. No fim de contas, Punk-hardcore nem será o que ouvimos mais. Refused aparece como influência por ser uma das referências que todos partilhamos. Outro exemplo igualmente unânime seriam os Modern Life is War.
Dando uma vista de olhos às vossas redes sociais, conseguimos perceber que as questões sociais, políticas, etc., são uma parte daquilo que a banda é. Essa posição tão vincada é, na vossa opinião, urgente tendo em conta a Sociedade em que vivemos actualmente, com a quebra de valores e ascensão de movimentos extremistas?
São parte do que a banda é porque é parte daquilo que somos enquanto indivíduos. É o que mobiliza boa parte das nossas conversas e é parte daquilo que fez com que passados cerca de vinte anos, desde que nos conhecemos, continuemos a ter prazer em estar juntos e a ter algo em comum que é maior do que nós. Creio que essa posição crítica é uma posição urgente independentemente do contexto em que vivemos. Não queremos viver num mundo onde não tenhamos algo a dizer e em que existamos apenas enquanto fantoches de vontades alheias. Como sempre vivemos em meios mais ou menos marginais ou “underground”, a ascensão de movimentos extremistas não nos surpreende. Sempre estiveram ou nesses meios ou ao virar da esquina à espera de uma oportunidade para se afirmarem. Não é sequer o extremismo que nos preocupa. O Punk-hardcore, como outros estilos, sempre foram, de alguma forma, extremistas, e foi daí que a sua força e originalidade veio. O que nos perturba é que aquilo que passa por extremismo se confunda com um ódio discriminatório, como são todas as expressões de nacionalismo, racismo, homofobia, transfobia, sexismo, e por aí fora. Na verdade, não há nada mais convencional, e por isso menos extremo, do que essas ideias. Servem muito mais para reproduzir e reforçar o que já existe do que para o destruir. Nós queremos uma transformação extrema das condições de vida e não que a vida de merda que levamos se torne ainda mais extrema.
Sei que já vos coloquei uma questão similar antes: até que ponto têm os músicos, os elementos criadores / criativos a "obrigação" de usar os seus meios como forma de alertar, aqueles que os seguem, para os malefícios da Sociedade Moderna em que nos vemos absorvidos?
Não
nos parece que exista qualquer obrigação. Para nós acontece como algo que
deriva da nossa própria forma de encarar a vida e nada mais. Nem achamos que
seja preciso alertar para o mundo decadente em que vivemos. Todos o
experienciamos. A diferença é que uns aceitam-no e outros recusam-no. O que nos
parece importante afirmar – tanto para nós próprios como perante quem queira
entrar nesse diálogo connosco – é que se levamos vidas de merda não é por
qualquer inevitabilidade. E que mesmo que fosse inevitável não nos
resignaríamos nem aceitaríamos contribuir mais para o problema do que para uma
mudança.
Mais ou menos. O Diogo, o vocalista, e o Tiago, um dos guitarristas, são de Setúbal. Em comum temos outra coisa que também não é indiferente ao que a banda exprime: todos crescemos nos subúrbios da área metropolitana de Lisboa, o que é uma experiência muito diferente de crescer no “centro”. Mas vivemos todos em Lisboa desde há alguns anos. Por diversos constrangimentos, por vezes alheios à banda, tem sido aí que temos tocado mais e, infelizmente, perdemos um pouco o contacto com as “cenas” mais suburbanas em que crescemos.
"Tempo Morto" foi lançado em 2018, qual a ideia por trás deste trabalho? Teremos direito a novo trabalho vosso em 2021, ou a pandemia veio, definitivamente, estragar os planos?
As ideias por trás do “Tempo Morto” e daquilo que nos fez juntar para fazer música já ficaram mais ou menos expressas atrás. Mas, para recuperar e sintetizar algumas das perguntas e respostas anteriores, a ideia por trás do trabalho passou sempre por usar a nossa experiência individual para abordar experiências mais globais. Uma delas relaciona-se profundamente com algumas das coisas que a pandemia agravou, em especial outra pandemia que já existia: a da saúde mental. A angústia, a ansiedade ou a depressão, que por vezes surgem nas letras e no ambiente de FARSA, sempre foram, para nós, uma consequência dessas relações de poder em que existimos. Devem-se mais a condições sociais, políticas e económicas do que a uma qualquer culpa individual ou fracasso pessoal, como se insiste em abordar o problema. Uma das ideias a que recorremos para expressar essas ideias foi a de “fim do mundo”: usamo-la para representar uma sensação subjectiva, que parte da nossa experiência individual, mas que nos parece bastante difusa por traduzir uma certa ausência de futuro que quase todos sentimos. Cremos que a pandemia só tornou estas ideias e sensações mais visíveis. Por isso o que tem movido FARSA e que está por trás do “Tempo Morto” mantém a mesma importância e, provavelmente, será por essas águas que continuaremos a navegar. Temos algumas músicas por gravar mas a pandemia interrompeu os planos e tem servido para fazer um pequeno interregno. Negar esta “nova normalidade” passará por gravar essas músicas num futuro próximo e voltar a tomar o controlo do “tempo morto”, por isso esperemos que surjam novidades em breve.
Mais uma vez o meu agradecimento pelas vossas palavras, e que tenhamos oportunidade de falar aquando de novo lançamento. Muito obrigado! Que 2021 seja mais simpático com o pessoal!
Nós
é que agradecemos o teu interesse e as tuas excelentes perguntas. Foi um prazer
responder e esperemos voltar a falar em breve, preferencialmente sem
“distanciamento social”. Força com a Utopia Platafórmica e esperemos que
continues a alimentá-la, até por recusares os nichos em que as “cenas” por
vezes se fecham e por cruzares campos musicais que têm muito mais em comum do
que reconhecem.
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